VILA
NOVA DA RAINHA / TONDELA - UMA CATÁSTROFE FACILMENTE EVITADA (MAIS UMA VEZ)
Depois dos relatos dos órgãos
de comunicação social ter relativamente diminuído, penso ser da nossa
competência e do nosso interesse, consultores e técnicos de SCIE, a análise as
causas deste incêndio, reflectindo sobre a sua a génese.
À partida, surge imediatamente
um pensamento: é necessária uma cultura de segurança e de prevenção mais intrínseca
nas pessoas relativamente aos incêndios, sejam eles florestais ou em edifícios.
Se essa sensibilização não existir nada será suficiente! Nem os melhores regulamentos,
nem os melhores equipamentos poderão substituir estas duas vertentes.
Por isso, abro aqui uma
janela de análise e de diálogo a quem possa ter um interesse acrescido sobre este
incêndio. E que este artigo possa constituir uma plataforma de discussão.
Compreensivelmente, não me
foi permitido visitar o local. Os dados mais técnicos, incluindo medições de
larguras de passagem ou outros que aqui adoto não foram confirmados no
local. Admito, por isso, alguma discordância pontual nos dados técnicos que a
seguir indico. Mesmo assim, estou certo que não estarão longe da verdade.
Durante a ocorrência dos
fogos florestais de 2017 pensava e comentava com colegas que um dia, algures no
futuro (esperando eu estar equivocado), iria acontecer uma catástrofe num
edifício e seria a vez do foco mediático dos incêndios incidir na outra
vertente desta área: OS EDIFÍCIOS! Pois, infelizmente aconteceu. Mais cedo do eu
esperaria!
Mas vamos ao assunto.
FACTOS
(EVENTUALMENTE) COMPROVADOS
· - O sinistro, com início no piso 1 (piso
superior) do edifício, teve início na propagação da temperatura da chaminé da
salamandra para os elementos que constituintes da cobertura do edifício.
· - Pela análise das peças televisivas e
jornalísticas, haveria um teto falso construído em placas de gesso cartonado e,
acima deste, uma cobertura construída em painéis do tipo “sandwich” (tudo
aponta nesse sentido) com poliuretano no seu interior.
· - O tubo da salamandra é prolongado através do
teto falso, do painel da cobertura, terminando ao ar livre sobre a cobertura do
edifício.
· - A evacuação (ou o acesso) ao piso superior
seria realizada por intermédio de um vão de escada (portanto, um caminho de
evacuação) com cerca de 1 metro de largura, segundo alguns depoimentos.
· - No piso inferior, o acesso ao exterior seria
realizado através de uma porta no fim da escada, com abertura para dentro do
edifício ou, em alternativa, por outra porta (desconheço o sentido da abertura)
que iria dar a um salão e daí haveria a possibilidade de aceder ao exterior do
edifício. Desconheço se a porta ao fundo das escadas estaria fechada à chave
mas, porventura, isso será irrelevante, uma vez que a mesma não abriu devido ao
amontoamento de pessoas junto à sua face interior.
· - O edifício não possuía extintores nem outro
tipo de equipamentos de primeira intervenção.
· - A contabilizar pelo número de pessoas
divulgado, 9 vítimas e 37 feridos, facilmente chegamos a um efetivo de 46
pessoas no piso superior. Teoricamente, esse efetivo facilmente ultrapassaria
as 50 pessoas, só no piso superior.
· - Em princípio, estaremos em presença de um
edifício considerado como “existente”, ou seja, construído anteriormente à
atual legislação. Para não me alongar muito pela regulamentação de SCIE, faço
uma breve menção ao art.º 14º - A – “Edifícios e recintos existentes”, do
RJSCIE - Regulamento Jurídico de Segurança Contra Incêndio em Edifícios,
aprovado pelo DL nº 220/2008, de 12 dezembro e alterado pelo DL nº 224/2015, de
9 de outubro, em vigor desde 1 de janeiro de 2009.
ANÁLISE
TÉCNICA
Estes são os factos comprovados:
· - Estamos em presença de um estabelecimento do
tipo VII “Hoteleiros e Restauração”, sem locais de risco E, altura inferior a
9m, com possível efetivo inferior a 100 pessoas.
· - Pelos número de pessoas avançadas pelos meios
de comunicação, do piso superior deveriam poder ser evacuadas um número
ligeiramente acima das 50 pessoas.
· - Segundo informação veiculada pela comunicação
social, as vítimas pereceram devido à inalação de fumos e ao pânico instalado
durante o processo de evacuação.
· - Devido à quantidade de fumo e à sua
toxicidade, a maioria das pessoas ficou desorientada, perdendo a noção do
sentido do caminho de evacuação que as levaria ao exterior do edifício.
· - Pelo facto de existir um só caminho de
evacuação (a escada), as pessoas precipitaram-se para essa via e daí para a
porta da saída de emergência em frente obstruindo-a de tal maneira que não foi
possível a sua abertura. Esta porta tinha o sentido de abertura para o interior
do espaço.
· - Conforme relato de algumas testemunhas, teria
ocorrido uma explosão no decorrer do incêndio. Foi adiantado por algumas
pessoas presentes no local ter sido originada pelo rebentamento de uma botija
de gás. No entanto, tudo leva a crer que tenha sido uma deflagração repentina
dos gases inflamáveis, partículas de carbono, produtos parciais da combustão,
acumulados nas zonas mais altas do compartimento. Estes gases foram oxigenados
por uma corrente de ar proveniente da quebra do vidro de uma janela do compartimento,
o que deu origem à sua ignição explosiva. Este processo é conhecido por “backdraft”.
NÃO
CONFORMIDADES
· - Tendo em conta o efetivo do piso superior,
além da escada existente, deveria possuir outro caminho de evacuação
alternativo com outra saída de emergência.
· - No entanto, tratando-se de um edifício
“existente”, e sendo esta escada a única via possível de evacuação deste piso,
parece-me razoável e aceitável que a mesma devesse ter, no mínimo, 2 UP de
largura, ou seja, 1,40m de passagem livre.
· - Os componentes do teto falso e da cobertura
deveriam possuir a reação ao fogo mínima exigida regulamentarmente. A cobertura
não deveria ser construída em painéis do tipo “sandwich”, com poliuretano (PIR
- poliisocianurato e PUR - poliuretano).
A estrutura deste material e a sua densidade fornecem-lhe as caraterísticas de
um excelente isolante térmico mas de um material com um mau desempenho
relativamente à reação ao fogo, quer na produção de fumos, quer na produção de
gotículas incandescentes (existem relatos de pessoas que atestam as gotas
incandescentes)..
· - A porta de saída para o exterior deveria
abrir no sentido da fuga, com recurso a uma barra anti-pânico (efetivo superior
a 50 pessoas) … e não deveria, supostamente, estar fechada à chave Por outro
lado, é muito provável que esta porta não possuísse a largura mínima suficiente
para evacuar o efetivo necessário.
· - Deveria ter sido instalada iluminação de
emergência e sinalética fotoluminescente de incêndio que indicasse os caminhos
de evacuação e as saídas de emergência para o exterior. Muito provavelmente, as
pessoas poderiam ter optado pela outra saída adjacente.
· - Com um forte grau de certeza, não existiria
qualquer sistema de deteção automática de incêndio instalado.
· - A não existência de extintores, apesar da sua
obrigatoriedade, em nada contribuiria para atacar o fogo na cobertura, acima do
teto falso. Poderia fornecer, isso sim, algum contributo para extinguir um
possível foco de incêndio que fosse mais acessível.
CONCLUSÕES
Deste contexto, poderemos, desde já, extrair
algumas conclusões:
· - A construção do edifício foi realizada completamente
à margem de qualquer regulamentação de SCIE, seja ela a atual ou a anterior a 1
de janeiro de 2009. Não é certo que as obras (interiores ou não!) tenham sido
realizadas sob a alçada da anterior legislação de SCIE. Para o caso, este facto
é irrelevante uma vez que a competência de assegurar o cumprimento do regime de
segurança contra incêndio em edifícios recai sobre a ANPC (Art.º 5º, RJSCIE) –
sejam eles “existentes” ou não. A responsabilidade da Câmara Municipal de
Tondela no processo de licenciamento das obras deste edifício estará por
apurar.
· - Todos os edifícios estão sujeitos a inspeções
a realizar pela ANPC ou por uma entidade por ela credenciada e este não é
exceção. Muito provavelmente, a ANPC não agiu em conformidade, como é da sua
competência.
· - A responsabilidade da implementação e da
preservação das condições de segurança contra incêndio no interior do edifício
recai sobre a Direção da Associação Recreativa, podendo mesmo essas pessoas virem
a ser constituídas arguidas se o Ministério Público assim decidir.
· - Nesta panóplia de incumprimentos, é também dado
como certo que o edifício, apesar da obrigação regulamentar, não possui Medidas
de Autoproteção implementadas e aprovadas pela ANPC.
· - Por outro lado, penso não ser aceitável que
os incumprimentos que o edifício possui sejam suficientes para invocar o art.º
14º A, ponto 2, do RJSCIE, ou seja, que as medidas obrigatórias não tenham sido
implementadas quer pela sua desproporcionalidade, quer pelas caraterísticas
construtivas, arquitectónicas ou de funcionamento e exploração.
A
ANPC E O ESTADO
Apesar de num passado muito
próximo terem ocorrido incêndios com dimensões maiores do que este, o efeito
mediático do incêndio em Vila Nova da Rainha – Tondela foi maior. Porquê?
Infelizmente, por uma única razão! Deu origem a vítimas e os incêndios anteriores
não!
Um exemplo: em setembro de
2012 deflagrou um incêndio no Retail Park de Portimão. Cerca de 230
trabalhadores, sem contar com o número de pessoas que diariamente visitavam
este espaço. Foram destruídas várias lojas (Decathlon, Aki, Staples, De Borla, Rádio Popular, Moviflor
e Continente).Quem viu as imagens após este incêndio não pode deixar de recordar
esta zona como uma “zona de guerra”. O momento do seu início, às 02h30 da manhã,
foi a razão para a não existência de vítimas. Não funcionou a deteção
automática (alegadamente inoperacional), provou-se que a compartimentação entre
lojas era inexistente. Realização inspeções da ANPC ao Retail Park? Desconheço.
Se a ANPC realizou inspeções ao estabelecimento e se os incumprimentos não
foram detetados será ainda mais gravoso… A comunicação social noticiou este
incêndio durante pouco tempo. Esta notícia deixou der ser “spot” passado um par
de dias!
Dois incêndios diferentes
mas com um ponto comum: a não realização de inspeções de SCIE aos edifícios.
Sabemos que, atualmente, a ANPC não tem técnicos suficientes para desenvolver
no terreno estas ações e que os sucessivos governos não investem na segurança
do país como deviam – tal e qual como o caso dos incêndios florestais. Temos a
prova disso todos os dias! As inspeções da ANPC poderiam contribuir para que
não ocorram estas situações? Possivelmente a probabilidade seria menor. Temos de
começar por algum lado…
No decorrer de uma
conferência no ano passado, um elemento da ANPC informou a audiência que no
segundo semestre desse ano (2017) os CDOS – Comandos Distritais de Operações de
Socorro estavam obrigados a realizar, pelo menos, 5 inspeções extraordinárias aos
edifícios da sua área geográfica. Ora, se tivermos em conta a área imensa que
tem um qualquer distrito em Portugal e a quantidade de edifícios passiveis de
sofrerem inspeções extraordinárias, o que representam 5 inspeções num mês? Com
associações recreativas (agora, claro!), dezenas de estabelecimentos que
recebem público, edifícios industriais, edifícios públicos (claro, não estão
isentos do cumprimento das premissas de SCIE!), etc…, 5 inspeções mensais são
uma gota de água num oceano na contabilidade probabilística da ocorrência de um
incêndio. “Se alguma coisa pode correr mal certamente correrá, e da pior
maneira possível!”!
A divulgação pública dos
relatórios da ANPC sobre estes incêndios poderia constituir uma importante ferramenta
de estudo e de prevenção para todas as pessoas ligadas a esta área. Qual a
razão para isso não suceder?