17/01/2018







VILA NOVA DA RAINHA / TONDELA - UMA CATÁSTROFE FACILMENTE EVITADA (MAIS UMA VEZ)

Depois dos relatos dos órgãos de comunicação social ter relativamente diminuído, penso ser da nossa competência e do nosso interesse, consultores e técnicos de SCIE, a análise as causas deste incêndio, reflectindo sobre a sua a génese.


À partida, surge imediatamente um pensamento: é necessária uma cultura de segurança e de prevenção mais intrínseca nas pessoas relativamente aos incêndios, sejam eles florestais ou em edifícios. Se essa sensibilização não existir nada será suficiente! Nem os melhores regulamentos, nem os melhores equipamentos poderão substituir estas duas vertentes.


Por isso, abro aqui uma janela de análise e de diálogo a quem possa ter um interesse acrescido sobre este incêndio. E que este artigo possa constituir uma plataforma de discussão.


Compreensivelmente, não me foi permitido visitar o local. Os dados mais técnicos, incluindo medições de larguras de passagem ou outros que aqui adoto não foram confirmados no local. Admito, por isso, alguma discordância pontual nos dados técnicos que a seguir indico. Mesmo assim, estou certo que não estarão longe da verdade.


Durante a ocorrência dos fogos florestais de 2017 pensava e comentava com colegas que um dia, algures no futuro (esperando eu estar equivocado), iria acontecer uma catástrofe num edifício e seria a vez do foco mediático dos incêndios incidir na outra vertente desta área: OS EDIFÍCIOS! Pois, infelizmente aconteceu. Mais cedo do eu esperaria!


Mas vamos ao assunto.


FACTOS (EVENTUALMENTE) COMPROVADOS

·     - O sinistro, com início no piso 1 (piso superior) do edifício, teve início na propagação da temperatura da chaminé da salamandra para os elementos que constituintes da cobertura do edifício.

·      - Pela análise das peças televisivas e jornalísticas, haveria um teto falso construído em placas de gesso cartonado e, acima deste, uma cobertura construída em painéis do tipo “sandwich” (tudo aponta nesse sentido) com poliuretano no seu interior.

·      - O tubo da salamandra é prolongado através do teto falso, do painel da cobertura, terminando ao ar livre sobre a cobertura do edifício.

·     -  A evacuação (ou o acesso) ao piso superior seria realizada por intermédio de um vão de escada (portanto, um caminho de evacuação) com cerca de 1 metro de largura, segundo alguns depoimentos.

·     - No piso inferior, o acesso ao exterior seria realizado através de uma porta no fim da escada, com abertura para dentro do edifício ou, em alternativa, por outra porta (desconheço o sentido da abertura) que iria dar a um salão e daí haveria a possibilidade de aceder ao exterior do edifício. Desconheço se a porta ao fundo das escadas estaria fechada à chave mas, porventura, isso será irrelevante, uma vez que a mesma não abriu devido ao amontoamento de pessoas junto à sua face interior.

·      -  O edifício não possuía extintores nem outro tipo de equipamentos de primeira intervenção. 

·     -  A contabilizar pelo número de pessoas divulgado, 9 vítimas e 37 feridos, facilmente chegamos a um efetivo de 46 pessoas no piso superior. Teoricamente, esse efetivo facilmente ultrapassaria as 50 pessoas, só no piso superior.

·  -  Em princípio, estaremos em presença de um edifício considerado como “existente”, ou seja, construído anteriormente à atual legislação. Para não me alongar muito pela regulamentação de SCIE, faço uma breve menção ao art.º 14º - A – “Edifícios e recintos existentes”, do RJSCIE - Regulamento Jurídico de Segurança Contra Incêndio em Edifícios, aprovado pelo DL nº 220/2008, de 12 dezembro e alterado pelo DL nº 224/2015, de 9 de outubro, em vigor desde 1 de janeiro de 2009.


ANÁLISE TÉCNICA

Estes são os factos comprovados:

·   -  Estamos em presença de um estabelecimento do tipo VII “Hoteleiros e Restauração”, sem locais de risco E, altura inferior a 9m, com possível efetivo inferior a 100 pessoas.

·  -  Pelos número de pessoas avançadas pelos meios de comunicação, do piso superior deveriam poder ser evacuadas um número ligeiramente acima das 50 pessoas.

·     -  Segundo informação veiculada pela comunicação social, as vítimas pereceram devido à inalação de fumos e ao pânico instalado durante o processo de evacuação.

·     - Devido à quantidade de fumo e à sua toxicidade, a maioria das pessoas ficou desorientada, perdendo a noção do sentido do caminho de evacuação que as levaria ao exterior do edifício.

·     -  Pelo facto de existir um só caminho de evacuação (a escada), as pessoas precipitaram-se para essa via e daí para a porta da saída de emergência em frente obstruindo-a de tal maneira que não foi possível a sua abertura. Esta porta tinha o sentido de abertura para o interior do espaço.

·    -  Conforme relato de algumas testemunhas, teria ocorrido uma explosão no decorrer do incêndio. Foi adiantado por algumas pessoas presentes no local ter sido originada pelo rebentamento de uma botija de gás. No entanto, tudo leva a crer que tenha sido uma deflagração repentina dos gases inflamáveis, partículas de carbono, produtos parciais da combustão, acumulados nas zonas mais altas do compartimento. Estes gases foram oxigenados por uma corrente de ar proveniente da quebra do vidro de uma janela do compartimento, o que deu origem à sua ignição explosiva. Este processo é conhecido por “backdraft”.


NÃO CONFORMIDADES 

·    - Tendo em conta o efetivo do piso superior, além da escada existente, deveria possuir outro caminho de evacuação alternativo com outra saída de emergência.
·    -  No entanto, tratando-se de um edifício “existente”, e sendo esta escada a única via possível de evacuação deste piso, parece-me razoável e aceitável que a mesma devesse ter, no mínimo, 2 UP de largura, ou seja, 1,40m de passagem livre.
· - Os componentes do teto falso e da cobertura deveriam possuir a reação ao fogo mínima exigida regulamentarmente. A cobertura não deveria ser construída em painéis do tipo “sandwich”, com poliuretano (PIR - poliisocianurato  e PUR - poliuretano). A estrutura deste material e a sua densidade fornecem-lhe as caraterísticas de um excelente isolante térmico mas de um material com um mau desempenho relativamente à reação ao fogo, quer na produção de fumos, quer na produção de gotículas incandescentes (existem relatos de pessoas que atestam as gotas incandescentes)..

·     - A porta de saída para o exterior deveria abrir no sentido da fuga, com recurso a uma barra anti-pânico (efetivo superior a 50 pessoas) … e não deveria, supostamente, estar fechada à chave Por outro lado, é muito provável que esta porta não possuísse a largura mínima suficiente para evacuar o efetivo necessário.

·   - Deveria ter sido instalada iluminação de emergência e sinalética fotoluminescente de incêndio que indicasse os caminhos de evacuação e as saídas de emergência para o exterior. Muito provavelmente, as pessoas poderiam ter optado pela outra saída adjacente.

·     - Com um forte grau de certeza, não existiria qualquer sistema de deteção automática de incêndio instalado.

·   - A não existência de extintores, apesar da sua obrigatoriedade, em nada contribuiria para atacar o fogo na cobertura, acima do teto falso. Poderia fornecer, isso sim, algum contributo para extinguir um possível foco de incêndio que fosse mais acessível.


CONCLUSÕES

Deste contexto, poderemos, desde já, extrair algumas conclusões:

·   -  A construção do edifício foi realizada completamente à margem de qualquer regulamentação de SCIE, seja ela a atual ou a anterior a 1 de janeiro de 2009. Não é certo que as obras (interiores ou não!) tenham sido realizadas sob a alçada da anterior legislação de SCIE. Para o caso, este facto é irrelevante uma vez que a competência de assegurar o cumprimento do regime de segurança contra incêndio em edifícios recai sobre a ANPC (Art.º 5º, RJSCIE) – sejam eles “existentes” ou não. A responsabilidade da Câmara Municipal de Tondela no processo de licenciamento das obras deste edifício estará por apurar.

·  -  Todos os edifícios estão sujeitos a inspeções a realizar pela ANPC ou por uma entidade por ela credenciada e este não é exceção. Muito provavelmente, a ANPC não agiu em conformidade, como é da sua competência.

·   -  A responsabilidade da implementação e da preservação das condições de segurança contra incêndio no interior do edifício recai sobre a Direção da Associação Recreativa, podendo mesmo essas pessoas virem a ser constituídas arguidas se o Ministério Público assim decidir.

·  - Nesta panóplia de incumprimentos, é também dado como certo que o edifício, apesar da obrigação regulamentar, não possui Medidas de Autoproteção implementadas e aprovadas pela ANPC.

·  -  Por outro lado, penso não ser aceitável que os incumprimentos que o edifício possui sejam suficientes para invocar o art.º 14º A, ponto 2, do RJSCIE, ou seja, que as medidas obrigatórias não tenham sido implementadas quer pela sua desproporcionalidade, quer pelas caraterísticas construtivas, arquitectónicas ou de funcionamento e exploração.


A ANPC E O ESTADO

Apesar de num passado muito próximo terem ocorrido incêndios com dimensões maiores do que este, o efeito mediático do incêndio em Vila Nova da Rainha – Tondela foi maior. Porquê? Infelizmente, por uma única razão! Deu origem a vítimas e os incêndios anteriores não!


Um exemplo: em setembro de 2012 deflagrou um incêndio no Retail Park de Portimão. Cerca de 230 trabalhadores, sem contar com o número de pessoas que diariamente visitavam este espaço. Foram destruídas várias lojas (Decathlon, Aki, Staples, De Borla, Rádio Popular, Moviflor e Continente).Quem viu as imagens após este incêndio não pode deixar de recordar esta zona como uma “zona de guerra”. O momento do seu início, às 02h30 da manhã, foi a razão para a não existência de vítimas. Não funcionou a deteção automática (alegadamente inoperacional), provou-se que a compartimentação entre lojas era inexistente. Realização inspeções da ANPC ao Retail Park? Desconheço. Se a ANPC realizou inspeções ao estabelecimento e se os incumprimentos não foram detetados será ainda mais gravoso… A comunicação social noticiou este incêndio durante pouco tempo. Esta notícia deixou der ser “spot” passado um par de dias!


Dois incêndios diferentes mas com um ponto comum: a não realização de inspeções de SCIE aos edifícios. Sabemos que, atualmente, a ANPC não tem técnicos suficientes para desenvolver no terreno estas ações e que os sucessivos governos não investem na segurança do país como deviam – tal e qual como o caso dos incêndios florestais. Temos a prova disso todos os dias! As inspeções da ANPC poderiam contribuir para que não ocorram estas situações? Possivelmente a probabilidade seria menor. Temos de começar por algum lado…


No decorrer de uma conferência no ano passado, um elemento da ANPC informou a audiência que no segundo semestre desse ano (2017) os CDOS – Comandos Distritais de Operações de Socorro estavam obrigados a realizar, pelo menos, 5 inspeções extraordinárias aos edifícios da sua área geográfica. Ora, se tivermos em conta a área imensa que tem um qualquer distrito em Portugal e a quantidade de edifícios passiveis de sofrerem inspeções extraordinárias, o que representam 5 inspeções num mês? Com associações recreativas (agora, claro!), dezenas de estabelecimentos que recebem público, edifícios industriais, edifícios públicos (claro, não estão isentos do cumprimento das premissas de SCIE!), etc…, 5 inspeções mensais são uma gota de água num oceano na contabilidade probabilística da ocorrência de um incêndio. “Se alguma coisa pode correr mal certamente correrá, e da pior maneira possível!”!


A divulgação pública dos relatórios da ANPC sobre estes incêndios poderia constituir uma importante ferramenta de estudo e de prevenção para todas as pessoas ligadas a esta área. Qual a razão para isso não suceder?